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“Segredo”

Publicado em 31/07/2020

Por: Guilherme Faria Costa

Olá meus amigos, como estão vocês? Este ano, para nossa desventura, as Festas Juninas e Julinas, consideradas algumas das maiores festividades da cultura brasileira, não puderam ser comemoradas como de costume. Mas, como tudo nesta vida são passagens, logo estaremos de volta ao normal. Associado aos festejos juninos, principalmente aos costumes e tradições caipiras, hoje não tão visto como antigamente, o tema deste conto é o Carro de Bois.

O Carro de Bois é um dos meios de transporte mais antigos que a humanidade desfruta. Historicamente, os carros de bois estão presentes em várias culturas. A maior coletânea sobre o Antigo Egito, o Livro dos Mortos, contém imagens de bois puxando sarcófagos como carros funerários. Os Bôeres, na África do Sul, após lutas e conflitos com os ingleses na Colônia do Cabo, foram forçados a migrar para o interior do país – hoje as províncias de Natal, Estado Livre de Orange e de Transvaal – e as grandes carretas puxadas por várias juntas de bois estavam com eles; esse episódio ficou conhecido como Groot Trek (Grande Marcha) e ocorreu entre os anos de 1835 e 1843.

Nos idos de 1549, já se ouvia o canto do carro pelas ruas de Salvador, pois Tomé de Sousa – primeiro governador-geral do Brasil – trouxe consigo carpinteiros e carreiros para a nova Colônia do Reino de Portugal. Um famoso episódio da História Brasileira, a respeito da Revolução Farroupilha, conta a transposição até a Lagoa dos Patos dos dois navios revolucionários de Garibaldi. As embarcações, tendo sido feitas em terra, careceram das mãos de Joaquim de Abreu para a fabricação de dois carretões puxados por 50 juntas de bois cada, que as levariam ao mar. No Brasil, o Carro de Bois ganhou nomes como Carreta, nos Pampas Gaúchos, e Cambona, em partes do interior do país, muito ligado às festas Juninas e Julinas, em homenagem a Sto. Antônio, São João Batista e São Pedro, mas também à Festa do Divino Pai Eterno (Trindade/GO), prestando-se ao mundo como mantenedor de tradições religiosas.

Na Espanha, a peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de El Rocío – na cidade de Almonte, na Andaluzia – reúne vários fiéis e irmandades às vésperas de Pentecostes, que saem de suas cidades natais e percorrem todo o caminho até o Santuário com carros de bois, carretas e cavalos enfeitados e decorados em homenagem à Santa. Desde 1305, na cidade de Florença (Itália), nos domingos de Páscoa é comemorado o Scoppio del Carro, onde um carro de bois todo enfeitado e puxado por dois pares de bois ornamentados, o Carro di Fuoco (Brindellone pelos florentinos) percorre a cidade até a Piazza del Duomo, onde até hoje fogos de artifício são soltos em comemoração ao dia da Ressurreição.

Apesar de sua simplicidade frente aos seus similares modernos, a composição e montagem de um Carro de Bois vai muito além do que muitos imaginam. A engenhosidade começa com a escolha do madeiramento do carro, cada parte tem seu tipo específico de madeira. Taiúva para a Mesa, Sucupira e Jacarandá (resistentes e ruins de fogo) para o Eixo, Aroeira e Jacarandazinho para o Chumaço. Há uma ordem na composição do Carro, começando pelas Cangas, Canzis e Brochas, que atrelam os bois em juntas; passando pelas Tiradeiras que ligam as juntas ao Cabeçalho; e este, com as Chêdas, Esteiras, Fueiros e a Mesa que formam o “chassi”; seguindo pelo Rodado e chegando ao Eixo, e aos famosos Cocões e Chumaços que, quando bem azeitados e com a carga pesada, geram o famoso “Canto”.

A “escola dos bois” começa desde tenra idade, já com a seleção dos bezerros parelhos no pé das vacas. Nomeados para não rimar, o que evita confusões sonoras, depois de desmamados os bezerros são atrelados aos pares (cangados), as ditas juntas, e amansados para aprender a trabalhar como um só. À medida que vão crescendo e se tornando garrotes, são castrados (a castração muda a condição hormonal dos animais fazendo que fiquem de melhor manejo), e passam a arrastar troncos com o intuito de irem desenvolvendo força de trabalho. Os garrotes depois de todos esses ensinamentos, já na condição de bois jovens, entram para compor o Carro.

A hierarquia do Carro de Bois é bem estabelecida e segue todo um procedimento: os bois mais espertos e que atendem melhor aos comandos são os Bois de Guia (os primeiros); na sequência destes, estão os bois jovens que estão aprendendo o ofício, os Pé de Guia ou de Meio; os Bois de Coice e/ou Pé de Coice (as juntas intermediárias variam conforme o número de bois), são bois melhores em força e mais velhos, cabe a eles puxar e sustentar o carro. Os homens que tangem o Carro de Bois são o Candeeiro e o Carreiro; ao primeiro cabe fazer com que a junta de Guia siga e puxe firme, sem vacilar; ao Carreiro, o “Marechal” do Carro de Boi, fica a responsabilidade de conduzir o Carro.

“– Tio, como se chama esse boi?”, perguntei, empoleirado no cabeçalho do carro. “– Uma coisa que não se conta a ninguém... SEGREDO!” Por que o Carro de Boi? Cabe aqui explicar esse pequeno diálogo. O Carro de Boi foi um dos elementos de minha infância, meu tio José Tarcísio Costa foi carreiro e ir visitá-lo sempre foi prazeroso para mim, meu irmão e meus primos. Passeios em que aprendi e pude ver como é respeitosa a ligação entre o carreiro e seus bois. Ao ouvir uma simples palavra de ordem de meu tio, os bois já se organizavam sozinhos às juntas para receberem a canga e dar início ao dia de trabalho. Lições de humildade que nunca vou esquecer.

Bem meus amigos, encerro por aqui mais este conto bovino, prestando homenagem à tão importante ferramenta do progresso que, cortando as eras com seu cantar barítono, ainda se faz presente nas lembranças e nos sertões do Brasil, trazendo uma grande lição de resiliência e sobriedade. E que, mesmo com tantos recursos modernos tem o respeito e a bagagem de ter acompanhado o avanço das civilizações. Além das memórias de festividades e do próprio Carro de Bois, presto honrarias ao aniversariante de julho, meu Tio Zé, que se estivesse conosco completaria seus 72 anos. Um abraço e até outra hora!

Tio Zé e seu Carro de Bois - Sempre juntas vermelhas

 

Scoppio Del Carro – Carro Di Fuoco

 

Groot Trek