Saiba mais sobre tudo que rola no mundo da pecuária!
Publicado em 20/03/2021
Por: William Koury Filho
Incrível como, em menos de dois séculos de ingresso no Brasil, a raça Nelore dominou quantitativamente as nossas pastagens. A partir de uma quantidade relativamente pequena de animais importados, a raça se adaptou, espalhando seus genes pelas diversas regiões do País, seja pela seleção pura seja pelos cruzamentos absorventes com o gado já existente. Atualmente, estima-se que o Nelore represente cerca de 80% do rebanho de corte brasileiro.
A rusticidade do Nelore resultou em performance reprodutiva e o sucesso da raça foi sustentado por características como facilidade de parto, habilidade materna e vigor do bezerro.
Fazer força no parto, lamber a cria, aleitá-la e até protegê-la contra predadores também são atributos naturais daqueles animais que começaram a chegar da Índia na segunda metade do século XIX.
Some-se à facilidade de adaptação dos zebuínos indianos capins de origem africana e o Brasil desponta, naturalmente, com o maior rebanho bovino do planeta. Simultaneamente, figuramos entre os maiores do mundo na produção de muitas commodities agrícolas, ao mesmo tempo em que preservamos mais de 50% do território com vegetação nativa. Assim, estamos entre os maiores exemplos de produção sustentável do planeta, lembrando ainda que a nossa matriz energética limpa dá exemplo com hidrelétricas, energia eólica, biocombustíveis e usinas fotovoltaicas que deverão crescer muito nos próximos anos.
“Mas o que esse papo tem a ver com pecuária do futuro?”, você deve estar se perguntando. Tudo a ver. Quando falo em sustentabilidade – e exemplifico com usinas fotovoltaicas – me vem à mente a fotossíntese como mecanismo eficiente dos vegetais em transformar energia solar em energia química para síntese de compostos orgânicos. Completando o ciclo virtuoso em ambiente tropical vem o ruminante gado zebu, tornando a equação “pastagens de boa qualidade e genética adaptada e produtiva” em elementos fundamentais para a pecuária sustentável.
Grande variabilidade
Vale ressaltar que o Nelore é algo muito grande. E sua rápida disseminação, aliada à falta de definição de um rumo claro nos processos de seleção, fez com que a raça chegasse aos dias de hoje com uma grande variabilidade morfológica e genética: animais altos e baixos, compridos e curtos, grossos e finos, ganhadores de peso e não ganhadores de peso, precoces e tardios etc.
Essa falta de padronização mostra, por um lado, imaturidade da raça em termos de definição do protótipo produtivo, mas, por outro, evidencia a poderosa ferramenta que temos para direcionar a seleção do Nelore para onde quisermos.
No início, grandes marcas da raça Nelore foram construídas por repercussão de resultados regionais associados a uma determinada família. Num segundo momento, as exposições agropecuárias se transformaram em verdadeiras vitrines em que criadores tradicionais e mais novos levavam os melhores indivíduos de seus respectivos plantéis para serem comparados por especialistas.
Fase interessante em que valia a credibilidade e eloquência na explanação de um técnico para apontar os rumos da seleção, enquanto os reprodutores identificados em pista como campeões e seus progenitores eram os grandes doadores de sêmen e multiplicavam seus genes impactando a pecuária de corte.
Duas décadas atrás, os campeões de pista eram a referência de genética de ponta. Através da pista foram selecionadas linhagens capazes de altos ganhos em peso com base em dietas cada vez mais sofisticadas e cuidados cada vez mais artificiais. Nesta altíssima performance em ambiente requintado é necessário tamanho, e, mais do que isso, estrutura de crescimento dos tecidos capazes de suportar esse enorme ganho em peso, nem que ocorressem correções de cascos periódicas.
O fato é que a perda de rusticidade, a partir da evolução da dieta e cuidados muito artificiais, colocou o processo de seleção das pistas em xeque, pois muitos daqueles animais grandões e bonitões da baia só apresentavam couro e osso no pasto – ambiente base da pecuária tropical.
Adequação ao sistema de produção
Hoje, os rumos a serem adotados na seleção do Nelore passam pelos desafios da zootecnia em definir quais são os sistemas de produção mais rentáveis nas diferentes regiões, pois o máximo em tecnologia não necessariamente irá gerar os melhores resultados financeiros.
Vamos deixar claro, caro leitor, que o uso de tecnologias aplicadas na medida certa é fundamental para se obter bons resultados. Atualmente, a seleção é pautada por dados que até pouco tempo atrás ainda não estavam disponíveis para tomada de decisão.
O peso, por exemplo, foi uma característica que passou a ser oficialmente medida somente em 1968, e, de início, eram poucas as fazendas que adotavam a prática de pesar seus animais com frequência. Hoje, toda fazenda que produz touros ‒ a maioria destinada à pecuária de corte comercial ‒ tem balança. Obviamente que, além do peso, dados de características de fertilidade, de qualidade de carcaça, de morfologia e até de eficiência alimentar vêm sendo coletados. Mais do que isso, esse banco de dados vem sendo analisado por programas de melhoramento genético que, por sua vez, disponibilizam estimativas de valores genéticos para diferentes características.
Por fim, esses mecanismos ponderam as características definidas como mais importantes para pecuária nacional sugerindo um índice de seleção genético ou genômico e que já vem ganhando componentes bioeconômicos há alguns anos.
O Nelore, e sua variabilidade, tem respondido bem aos desafios impostos. No quesito peso, lembro, ainda garoto (no final da década de 1970), da propaganda do touro Dumu – filho de Karvadi em Mara, ambos importados em 1962, e pai do touro Gim de Garça, um divisor de águas da raça Nelore para desempenho.
Era assim:
“Dumu: 1.000 kg de raça”, em referência a seus 1.050 kg, uma medida fantástica para a época. Atualmente, a marca de 1.000 kg é ultrapassada por qualquer bom touro melhorador com manejo nutricional adequado.
Quando o assunto é precocidade sexual, vale recordar que até a década de 1980 era frequente encontrar rebanhos em que as novilhas eram cobertas com três anos de idade e o sal mineral era um luxo. Hoje, com boa pastagem e suplementação adequada, a prenhez de 12 a 14 meses é uma realidade. Marmoreio era outro mito. Hoje, encontramos linhagens de Nelore com o marmoreio comparado ao das raças britânicas, além de atributos de carcaça, como acabamento e área de olho de lombo. A eficiência alimentar é outra característica que o Nelore apresentou muita variação.
São características avaliadas por programas em melhoramento genético que, isoladamente ou não, apresentam índices de seleção, sejam eles empíricos ou direcionados por critérios bioeconômicos.
Nem tudo está OK
Tudo parece perfeito. “Só que não”, como diz a rapaziada de hoje.
Embora o mercado esteja comprando o conceito de TOP 0,1 e interpretando a genômica como verdade absoluta, vale refletir que, em média, os reprodutores Nelore que ponteiam os índices dos diferentes programas estão sendo conduzidos para um peso ao nascer cada vez maior e com distocias mais frequentes.
Por vezes, só pelo índice podemos ter um animal tardio ou ruim para transmitir habilidades maternais, ou mesmo transmitir temperamento reativo. Isso, sem falar que características raciais, biotipo para conformação frigorífica ou aprumos devem passar pelo crivo dos olhos humanos ‒ se possível com uma metodologia como a do EPMURAS, que é capaz de traduzir o peso do animal num “retrato falado” em 3D….
Não há dúvida de que as avaliações genéticas devem ser valorizadas. Mas penso que corremos o risco de errar a mão na busca do desempenho a qualquer custo. Como aconteceu com a pista.
Hoje, o tema interação genótipo-ambiente é uma das linhas de pesquisa importantes no melhoramento dentro das principais universidades como a Unesp/Jaboticabal, onde foram identificados marcadores genômicos específicos para desempenho em pastagens de piores e melhores valores nutricionais.
E é na pesquisa que encontraremos respostas para dúvidas como “Será que existe um Nelore bom para tudo em qualquer ambiente? Ou será que devemos partir para linhagens de especialistas?” Ou “Será que um dia teremos linhagens paternas e maternas que nos tragam vacas de pouca demanda de mantença, mas que, ao mesmo tempo, sejam capazes de desmamar bezerros em elevados percentuais de seu peso?” E que produzam bois capazes de desempenhar bem a pasto ou em confinamento, já que a tendência é serem abatidos bem pesados? Ou seja, a vaca não pode ser grande e a carcaça do boi tem que ter caixa para abrigar mais peso.
Eu, que acompanho rebanhos de ponta na produção de touros melhoradores, fico imaginando quando essa genética irá impactar de vez os rebanhos comerciais…
Futuro promissor.
Não basta o vento...
O vento está muito favorável para a pecuária brasileira e tudo indica que a raça Nelore continuará sendo a grande protagonista dessa história de sucesso. Mas, como na famosa frase do filósofo grego Sêneca (“Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”), temos que definir aonde queremos chegar, já que existem conflitos na seleção para alto desempenho e para rusticidade.
Depois de 50 anos de vida – 25 deles trabalhando como zootecnista –, percebo que, mesmo com ferramentas cada vez mais precisas, a interpretação humana das informações genéticas e a percepção das particularidades ambientais e de mercado são fundamentais para o sucesso na atividade.
Tecnologia é básico e estará cada vez mais disponível, de forma democrática. Mas são as pessoas ‒ com suas habilidades e talentos ‒ que continuarão a fazer a diferença nos resultados e na definição do sucesso das raças e das marcas de gado e de carnes que despontarão neste século XXI.